quarta-feira, 22 de junho de 2016

Esse é o problema com os amantes passados. Parecem perfeitos, mas não passam de histórias cortadas e interrompidas, que o nosso suspiro de autodestruição insiste em fantasiar finais felizes. As lembranças podem ser mexidas e alteradas. O passado não é algo fixo, muito menos confiável.

Ficam sempre as coisas para buscar e o resto do amor, que entala em nossas gargantas e amarga nossos corações.
Fui me adequando ao espaço que ficou com a tua ausência
No começo foi difícil; sentia-me deslocada, em um milhão de metros quadrados de saudade
Hoje é mais fácil construir paredes nesses hectares de solidão
E cercar de paredes o contorno do meu novo lar
Chamo isso de amor próprio, mas sei muito bem que não o é
Ainda é saudade, só não dói mais tanto assim

sábado, 24 de outubro de 2015

Mas qual o motivo disso, ele perguntou. Ora, eu respondi, todos querem ter seus romances não publicados, quem sabe, encontrem os olhos do leitor apaixonado. Aquele que consegue identificar todas as citações escondida em cada palavra.

Menina-peixe

A história aconteceu faz muito tempo. Tanto tempo, que eu poderia começá-la com “era uma vez’’, mas isso não é um conto de fadas, e eu não vou transformá-lo em tal. Eu era um estudante nessa época; estudava para ser padre. Acho que porque eu queria ficar mais perto de alguma fé, mas tenho quase certeza que a motivação principal foi simplesmente uma promessa feita pela minha mãe. Eu nasci doente, e ela deve ter prometido a algum santo desconhecido ou muito antigo que, se eu sobrevivesse, eu dedicaria minha vida aos mandamentos sagrados. Uma promessa muito séria para se fazer com a vida dos outros, se querem saber o que eu penso, mas eu pensava pouco nisso. Eu estudava e decorava, não pensava ou sonhava. Isso é para poetas mundanos, não para padres com votos de castidade e olhos cegos para as belezas vulgares.
Meu professor era um padre muito velho, que de tão velho já tinha se permitido à algumas das tais vulgaridades tão condenadas pela nossa fé. Entre as aulas de latim e leitura da bíblia, ele dizia que eu precisava entender os mistérios do amor de Deus. “Entrar em mistério”, como ele dizia. Esse termo significava uma hipnose, algo que te faria ver anjos e cruzes, e céu e a bondade do criador. Ele induzia essa “viagem” por meio de uma lira e a ida ao paraíso deveria servir para reforçar seus votos e suas crenças. Meu professor dizia entrar em mistério todas as horas e, de tanto entrar nele, sua vida já era um verdadeiro mistério da fé. Ele dizia ver tudo no mundo com um toque divino, e ver a mão de Deus em cada canto da cidade. Eu achava incrível todo aquele amor e devoção, e me perguntava se um dia minha pouca fé me deixaria presenciar esses mistérios também.
Um dia foi a minha vez de começar. Na época não existia divãs, nem psicanálise, mas aposto que os princípios das duas coisas é o mesmo. Eu me deitei de costas para o meu professor, e com a ajuda da lira, meu transe começaria. O que ele chamava de transe eu chamei de sono. Muito sono. Meus olhos começaram a pesar e eu pensei comigo mesmo “deve ser isso. Eu vou sonhar. Sonhar com anjos brincando em nuvens, e Deus a cuidar de todos os seus filhos”. Mas eu não sonhei com nada. Nada mesmo. Foi apenas um cochilo, sem sonhos, onde acordei com um rastro de baba no canto direito da boca e olhos cheios de remela.
Que eu não tinha fé o suficiente para entrar no tal mistério, isso eu já sabia. Mas, talvez, meu professor nem desconfiasse. Mas, ao acordar e abrir meus olhos pesados e ver o sorriso daquele velho, cheio de esperança com o meu sonho divino, fiquei com medo de ser um herege. A época não era fácil para o paganismo. E eu fiz a única coisa que eu o catolicismo ensina a fazer bem: menti. Disse que fui a uma terra molhada com lágrimas de fé, e que um anjo aparecia para enxugá-las, cantando os salmos do Apocalipse. Uma bela mentira, eu acho.
Talvez pelo meu professor já ser velho, e ter se perdido nas maldades do mundo nos seus mistérios ou, quem sabe, por ele mesmo mentir sobre sua fé há milênios, ele sorriu. Um sorriso tolo e desajeitada, com lágrimas pouco convincentes, de orgulho. E naquele diz, quando começou a chover uma chuva que deixou a terra úmida pelo resto do ano, nenhum anjo apareceu cantando salmos do Apocalipse. Eu molhei minhas bochechas em silêncio, com lágrimas amargas e lábio selados, pois sabia que a chuva era minha culpa. Porque eu tinha aprendido a mentir.  
Mas, como todo mortal pecador sabe, a mentira só dói no começo, quando ainda há o mínimo conflito de consciência. Depois, já fica natural, fácil e esperada. Uma vez por dia, sete dias por semana, eu encontrava meu professor, lia salmos em latim e depois me deitava ao som da lira. Dormia o sono justo das consciências pesadas, sonhava com moças de seios à mostra, cavalos em corrida ou moinhos abandonados mas, quando acordava, clamava ter visto o rosto de Jesus Cristo na cruz, ou mesmo Virgem Maria a chorar pelos pecados que seu filho tinha pago e os humanos voltavam a cometer. Meu professor não poderia estar mais feliz.
Mas o castigo sempre vem ao pecador. Cedo ou tarde, embora o meu tenha vindo bem cedo. Numa tarde ainda chuvosa, eu me encaminhei para minha sessão de mistério. Deitei ao som da lira e me deixei dormir. Mas daquela vez eu sabia que precisaria mentir sobre o sonho. Não porque era bobo, ou vulgar. Teria que transformar um pecado em algo divino.
“Era o fundo do mar. E eu sei que era o fundo do mar, pois uma vez, quando criança, eu mergulhei tão fundo que achei que ficaria preso entre as pedras para sempre, apreciando a luz entrar devagar por toda aquela água. E era o fundo da mar porque eu estava entre as mesmas pedras, com a mesma pouca luz a passar por camadas e camadas de água. Mas era diferente. Não haviam os peixes de sempre. Havia ela. Dançando como quem embala o mundo em suas curvas, com os sorriso doce e os olhos fundos, cheios de promessa e desejo. Uma sereia, eu lembro de ter pensado. Não se ouvia falar em sereias naquela época. Todas as histórias contendo as mulheres sedutoras do fundo do mar foram escondidas, para não habitar secretamente o imaginário dos homens de bem. Não se pode imaginar o que não se conhece, por isso tenho certeza do que vi. Um sereia, metade peixe, metade menina, tão bonita que me faria negar toda a minha pouca fé sem pensar duas vezes. Ela pedia para dançar para os homens lá fora, e aquilo me desesperava. De tanto desespero, eu a abraçava com força e o meu derradeiro fim foi ver que ela me abraçou também.”
A lira foi aos poucos sumindo e logo eu estava mais uma vez confrontando o sorriso do meu velho professor, com olhos meio cegos de tanta curiosidade com o tal mistério que eu tinha presenciado. Mas minhas palavras me faltaram, e meu latim sumiu em meio às águas da minha sereia. Não consegui mentir, nem inventar sobre crucifixos ou anjos chorando. Eu só me esforçava para guardar aquela imagem na lugar mais fundo da minha alma.
Meu professor não perguntou, de repente pensou que eu vi algo muito belo, talvez Deus em pessoa. Ou então teve a certeza de aquele foi meu primeiro mistério de verdade, e justamente por ser um mistério, eu teria que guardar para mim. Seu sorriso tolo me compreendeu por inteiro e ele me deixou partir, enquanto se perdia em lembranças antigas.
A minha sereia continuou me visitando em mistérios e logo eu já não precisava de lira ou qualquer coisa do tipo para encontrar com ela. Ela dançava quando queria, e me encontrava paciente, disposto a dar o pouco do meu ser para vê-la dançar mais um pouco. Era um sonho, um mistério, tal como meu professor falava. E, da mesma maneira que não tentava ajudar os anjos chorões que recitavam versos do apocalipse, eu não tentava ajudar minha sereia. Era errado amá-la no mundo, na Igreja e no meio daquele livro de regras cheios de histórias loucas. Mas, no fundo do mar, onde o jeito que ela dançava ditava as regras do meu ser, a única coisa que havia era o nosso amor.
Mas meu amor parecia não ser suficiente. Ela ficava melancólica, e logo me pedia, em uma língua que só nós dois conhecíamos, pedia para que os homens a vissem. Perguntava quando eu a levaria para o mundo. E eu mentia. Dizia que logo descobriria um jeito.
Por que eu mentia, você ainda se pergunta? Se eu levasse minha menina-peixe para o mundo, os homens a matariam em nome de um Deus que nunca apareceu. E sua beleza seria exposta a todos aqueles que não sabem apreciá-la. Preferia eu a ficar no fundo do mar para sempre.
Mas eu ainda não sabia como faria isso.
Virei padre, celebrei missas e menti mais sobre mistérios e fé. Já não me importava essas mentiras. Minha sereia me buscava quando queria e me fazia com ela dançar. Transformava o azul comum dos meus olhos em castanhos terra, pois a água era toda para o nosso mundo e me deixava petrificado, em qualquer lugar, enebriado com o nosso amor e aquele sorriso. Logo minhas missas lotavam, e eu era o padre que via o divino.
Meu professor, já com o sorriso mais cansado e os olhos mais cegos, percebeu algo. Talvez eu já não estivesse mentindo tão bem ou talvez o pecado já estivesse perceptível para quem sempre viveu nele. “Fique cego”, ele disse. E saiu. Com músicas de bares e poesias de rimas condenadas em um voz entrecortada pela fé que ele ainda dizia ter.
E foi isso que eu fiz. Pedi para à guarda da cidade que, em uma cerimônia pública, me deixasse cego, com um tiro em cada olho. “O padre ficou louco”, alguns diziam. Mas eu menti mais uma vez, disse que precisava ver o mundo através dos olhos do Criador, e só poderia assim fazê-lo cegando os olhos mortais cheios de pecado.
Quando os tiros vieram, devagar e sem dor, se alojar em cada uma das minhas órbitas, e o azul dos meus olhos havia se apagado para sempre, eu sabia que o meu mundo agora era o meu mistério e a minha menina-peixe de cabelos flutuantes. Viveria assim para sempre e dividiria, com prazer, o pouco de alma que ainda me sobrava.

“E quando os homens vão me ver”, ela perguntou. “Os homens? Nunca!”, eu respondi. E por um momento eu tive medo. Mas ela riu a risada mais doce na língua que só nós conhecemos e eu sabia que ficaria tudo bem.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

As recordações da delegacia

Uma noite atípica. Mas não tão atípica assim, considerando que eu morava em um grande cidade nessa época. Eu tinha perdido alguns documentos, e estava na delegacia, prestando contas dessa minha desatenção. Burocracias que nunca mudarão, eu acho. Mas o que eu mais lembro daquele dia não é do policial, ou do delegado, me fazendo perguntas idiotas sobre como eu achava que tinha perdido meu passaporte. Lembro pouco do café morno que me serviram enquanto eu esperava horas sem fim para emitir um simples papel, comprovando a estupidez da perda dos meus documentos. Tudo bem, é assim mesmo.
O que eu me lembro é de um homem, um senhor já, com a cabeça repleta de cabelos brancos e uma postura já curvada, herança do peso dos anos. Ele estava inquieto e, na falta de coisa melhor para fazer, eu comecei a prestar atenção nos seus passos. Ele andava rápido, considerando uma possível artrose do joelho, que o fazia mancar vez ou outra. Com isso, logo supus que ele esperava o filho ou, mais provável ainda, o neto. Algum adolescente bêbado, que tinha sido pego pela polícia. Ou quem sabe tinha feito algo mais grave. Finalmente, ele conseguiu interceptar um policial, que passava com uma pressa totalmente fora de sincronia com a demora que eu e o velho estávamos presos.


Minha aliança de casamento, ele disse. Uma voz rouca, estragada pelo cigarro e pelo frio que fazia naquele dia. O policial lançou a ele um olhar de pouco caso e seguiu seu rumo, em meio à salas cheias de papel e casos arquivados.


Aliança, eu me perguntei. Ah, claro. Esse pobre senhor foi assaltado, e os bandidos sem coração levaram do pobre homem sua única jóia. A aliança estimada, que selara o compromisso de um casamento com uma mulher que os anos o ensinaram a amar mais do que a própria vida. Me perdi em mil possíveis poesias sobre a perda daquela aliança e da perda do símbolo da união que, de repente pela falta de dinheiro, não poderia ser renovado. Ou, mesmo se pudesse, não teria o mesmo valor .


Fui chamada até a sala e, depois de assinar alguns muitos papeis, simplesmente porque perdi uns documentos, ele estava sentado na cadeira. O joelho deve ter reclamado daquela andança sem fim.


Por pura curiosidade, resolvi me sentar ao seu lado. Esperando talvez um relato apaixonado e um senso de justiça que só os apaixonados entendem. Eu não estava apaixonada naquela época, e pensei em viver um amor pela história dos outros. Uma poesia de terceiros que eu transformaria em um conto, assim que chegasse em casa.


Muitos minutos de silêncio depois e ele começou a falar. Falou coisas sem sentido no começo, algo como uma prisão injusta, já que ninguém tinha a intenção de fazer mal. Ele me perguntava, eu assentia, mesmo sem entender bem do que se tratava. Mas e a aliança? Me dei a liberdade de perguntar.
Ele riu um riso sem alegria e sua postura ficou ainda mais curvada.
Agora veja só, minha filha, ele começou. Minha mulher, com quem sou casado há quarenta anos, está presa. Mas ela vai sair na semana que vem. Mas mandaram um comunicado para nossa casa, dizendo que perderam a aliança de casamento dela.
A perda era irreparável, eu sabia bem. Nada se encontra nesse abismo de papeis e cafés mornos.
Ele chorou um pouco e depois riu. A Amélia vai sair desse lugar em uma semana e que aliança ela vai usar?


Não perguntei o porquê dela estar presa, e isso nem me importava. E a aliança, eu perguntei. Ele disse que de repente poderia comprar outro anel, mas não seria o mesmo.
Claro que não, eu disse. Uma nova aliança jamais terá quarenta anos.


Talvez a gente precise reinventar o amor. À essa altura da vida. Como a vida nos traz surpresas, não é?

Não digo que aprendi a lição de ver o lado bom de tudo depois desse acontecimento. Maldito sistema penitenciário.